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Câmara aprova proibição de voto para presos provisórios em meio a conflito com Constituição

Câmara aprova proibição de voto para presos provisórios em meio a conflito com Constituição nov, 21 2025

Ao aprovar por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção uma emenda ao Projeto de Lei 10.524/2025 — conhecido como Marco Legal do Combate ao Crime Organizado — a Câmara dos Deputados alterou, de forma controversa, um direito constitucionalmente garantido desde 1988: o voto de presos provisórios. A emenda, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), passou em plenário na terça-feira, 18 de novembro de 2025, em Brasília, e agora proíbe qualquer pessoa sob prisão provisória de votar, independentemente de ter sido ou não condenada. A medida, que entra em vigor após sanção presidencial, desafia diretamente o artigo 15, inciso III, da Constituição Federal, que só suspende direitos políticos após sentença transitada em julgado. E isso, na prática, significa que o Legislativo está tentando reescrever a Carta Magna por via legislativa — algo que o Judiciário provavelmente não aceitará.

Um voto que já existia — e que agora será cortado

Até agora, o Brasil permitia que presos provisórios votassem. Não por generosidade, mas por princípio: a presunção de inocência. Em 2024, mais de 6.000 pessoas nessa situação votaram em eleições municipais, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em unidades prisionais de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, mesários iam até as celas, com urnas portáteis e fiscalização da OAB. Era logística complexa, mas legal. Agora, o novo texto do PL Antifacção muda isso. O artigo 10 da Lei nº 4.737/1965 (Código Eleitoral) será alterado para determinar que a simples prisão provisória — mesmo sem condenação — é motivo automático para cancelamento do título de eleitor. Não há mais necessidade de julgamento. Basta estar detido.

“O voto pressupõe liberdade e autonomia de vontade”, disse van Hattem em plenário. Mas especialistas apontam: se isso fosse verdade, também se deveria suspender o voto de pessoas sob prisão domiciliar, de pacientes em hospitais psiquiátricos ou de idosos em asilos — todos com restrições à liberdade. A lógica não se sustenta. O que há, na verdade, é uma intenção política clara: impedir que alguém, talvez o ex-presidente Jair Bolsonaro, vote em 2026. E isso não é disfarçado.

O voto do PT: “Sabemos que é inconstitucional, mas votamos sim”

Na sessão, o líder do Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara, Lindbergh Farias (PT-RJ), surpreendeu. Apesar de reconhecer que a emenda é inconstitucional, votou a favor. “Vamos votar ‘sim’ sabendo que é inconstitucional”, disse. E então, ironizou: “Parece que o Partido Novo já abandonou Bolsonaro. Agora quer tirar o voto dele. Hoje acontece o seguinte: quem tem trânsito em julgado não vota. Agora, já estão querendo antecipar para a prisão provisória a fim de impedir o voto de Bolsonaro.”

O apoio à emenda foi transversal. Deputados da oposição como Kim Kataguiri (União-SP), Marco Feliciano (PL-SP) e Adriana Ventura (Novo-SP) votaram com a base governista. Até membros do PT, como Arlindo Chinaglia (SP), Benedita da Silva (RJ) e Alencar Santana (SP), acompanharam. A motivação? O medo do crime organizado. O argumento de que presos provisórios seriam influenciados por chefes criminosos dentro das penitenciárias. Mas ninguém apresentou dados. Nenhum estudo. Nenhuma estatística de votação manipulada. Apenas suposições.

Os tribunais já estavam preparados — e vão resistir

Enquanto a Câmara aprovava, os tribunais eleitorais já tinham planos. Em fevereiro de 2024, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS), em Porto Alegre, reuniu 13 instituições — incluindo a SUSEPE e a FASE — para planejar a logística de votação em presídios. Já em novembro de 2025, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), sediado na capital fluminense, lançou o projeto "Democracia Além das Grades", com apoio da OAB, do Ministério Público e da Defensoria Pública. A ideia: instalar seções eleitorais especiais em 2026, exceto em unidades ligadas a facções criminosas. O projeto é experimental, com monitoramento contínuo e transparência.

Isso cria um conflito institucional sem precedentes. O Legislativo quer cortar o voto. O Judiciário quer garantir o direito. E o Supremo Tribunal Federal (STF) vai ter que decidir. O que é mais forte: a lei aprovada por 349 deputados ou a Constituição de 1988? A resposta, quase certamente, virá por meio de uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ou de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral. E há grande chance de o STF suspender a norma antes mesmo da sanção presidencial.

Os custos e os riscos: um discurso sem números

Os custos e os riscos: um discurso sem números

A emenda justifica a proibição alegando que seções eleitorais em presídios geram “custos elevados” e “riscos operacionais significativos”. Mas onde estão os dados? O TSE gastou R$ 2,3 milhões em 2024 para viabilizar o voto de 6.000 presos provisórios em todo o país — menos de 0,02% do orçamento total da Justiça Eleitoral. Em contraste, a operação de segurança para as eleições gerais de 2022 custou R$ 2,1 bilhões. Os riscos? Nenhum incidente grave foi registrado. Nenhum mesário foi agredido. Nenhuma urna foi roubada. A narrativa do perigo parece construída para justificar uma decisão ideológica, não técnica.

O que vem a seguir? O STF será o árbitro

As próximas semanas serão decisivas. O texto vai para a Presidência da República, mas já há movimentos no STF. Advogados constitucionalistas, como Luís Roberto Barroso (ex-ministro) e Paulo Gonet (ex-procurador-geral), afirmaram em entrevistas recentes que a medida “desmonta o núcleo da democracia brasileira: o direito de escolha, mesmo para quem está preso”. O próprio TSE já indicou que não irá cumprir a lei se for considerada inconstitucional — e isso pode gerar um impasse institucional sem precedentes.

Além disso, o tema tem um efeito cascata. Se a prisão provisória basta para suspender o voto, por que não suspender o direito de trabalhar, estudar ou receber assistência médica? O princípio da presunção de inocência é a base de qualquer sistema democrático. E o Brasil, por mais que se esqueça disso em momentos de pânico, foi um dos países que mais avançou nisso na América Latina.

Por que isso importa para você?

Por que isso importa para você?

Porque não é só sobre presos. É sobre quem decide o que é justo. Se o Congresso pode, por maioria, tirar direitos garantidos pela Constituição, então qualquer grupo pode ser alvo: migrantes, manifestantes, jornalistas, políticos opositores. O voto de um preso provisório não muda uma eleição. Mas o precedente que isso cria pode mudar o Brasil para sempre.

Frequently Asked Questions

Por que a emenda é considerada inconstitucional?

A Constituição Federal de 1988, no artigo 15, inciso III, só suspende direitos políticos após condenação transitada em julgado. A emenda proposta pela Câmara antecipa essa suspensão para a prisão provisória, sem julgamento, violando o princípio da presunção de inocência, garantido no artigo 5º, LVII. O STF já decidiu em múltiplas ocasiões que a prisão provisória é medida cautelar, não punitiva — logo, não pode gerar perda de direitos civis.

Quem mais pode ser afetado por essa mudança?

Qualquer pessoa presa sem condenação final, mesmo que inocente. Isso inclui estudantes, ativistas, pequenos comerciantes e até funcionários públicos acusados de crimes sem provas. Em 2024, 60% dos presos provisórios no Brasil estavam em detenção por crimes não violentos. A mudança poderia despolitizar um grupo de até 100 mil eleitores — muitos deles de periferias, onde o voto é mais decisivo.

O que os tribunais eleitorais estão fazendo diante dessa lei?

O TRE-RJ já lançou o projeto "Democracia Além das Grades" para 2026, com seções especiais em presídios. O TRE-RS também mantém planos logísticos para 2024. Ambos os tribunais afirmam que não irão suspender a operação enquanto a Constituição não for alterada judicialmente. Isso cria um cenário de desobediência civil institucional, algo raro na história brasileira, mas possível diante de uma clara violação constitucional.

Existe precedente de algo assim no Brasil?

Nunca. Em 2000, o STF rejeitou proposta semelhante para suspender o voto de presos em regime fechado. Em 2012, o Tribunal decidiu que o voto de presos provisórios é um direito fundamental, não um privilégio. A única tentativa anterior de restringir esse direito foi em 2002, por meio de projeto de lei que foi arquivado após pressão da OAB e da sociedade civil. Nada se comparou à amplitude e ao timing político dessa emenda.

O que pode acontecer se o STF não suspender a lei?

Se o STF não agir, o Tribunal Superior Eleitoral pode se recusar a implementar a norma, gerando um impasse entre os poderes. Eleições de 2026 poderiam ser questionadas judicialmente por irregularidades. Além disso, a comunidade internacional — como a ONU e a OEA — poderia emitir relatórios de preocupação com a democracia brasileira, afetando acordos internacionais e investimentos. O Brasil já perdeu credibilidade em temas de direitos humanos; isso pode aprofundar a crise.